Estado abdica de 10,8 mil milhões de receita fiscal Foi salvo
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Estado abdica de 10,8 mil milhões de receita fiscal
22-10-2017 | Dinheiro Vivo
Governos abdicam de parte dos proveitos tributários para incentivar a economia. A despesa fiscal disparou, mas a má contabilização pode ser a causa.
O Estado terá uma despesa fiscal de 10,8 mil milhões de euros no próximo ano, o equivalente a 90% da receita estimada para o IRS. O governo abdica de parte dos proveitos fiscais eventuais, muitas vezes na esperança de impulsionar a economia e obter ganhos mais à frente. A receita fiscal prevista é quatro vezes superior, mas ainda assim estes benefícios (despesa) têm aumentado de forma acelerada nos últimos anos e já foram objeto de várias chamadas de atenção pelo Tribunal de Contas (TC). Os exemplos são dados no próprio relatório do Orçamento do Estado (OE) para 2018. “Para o período 2015-2018, prevê-se uma evolução da despesa fiscal de aproximadamente 1677 milhões de euros, o que corresponde a um aumento de 18,2%“.
Setor automóvel
Naquele mesmo período de quatro anos, a despesa fiscal com Imposto Sobre Veículos (ISV) dispara quase 60%, totalizando no próximo ano 339 milhões de euros. Se a comparação for feita com 2011 (usando índice 100=2011), o ano em que a troika entrou em Portugal, então o aumento é de 176%. No caso do Imposto Único de Circulação (IUC), o crescimento chega a uns estratosféricos 589%. As taxas preferenciais aplicadas aos automóveis com motores híbridos, às autocaravanas, aos veículos de uso misto e aos veículos de mercadorias explicam a evolução no ISV do lado da despesa fiscal. Curiosamente, esta despesa também se relaciona com os veículos trazidos por particulares que transferem a sua residência para Portugal e os automóveis regularizados por pessoas com deficiência. Um aumento na venda de veículos leva sempre a maior receita fiscal, mas também a um aumento da devolução parcial aos contribuintes em sede de ISV e de IUC. No caso do “selo do carro”, a renovação do parque automóvel leva sempre o Estado a carregar nos benefícios.
“Não há o reconhecimento do contributo do setor automóvel para a economia por via da receita gerada para o Estado. Repare-se que os veículos geram receita por via do ISV, do IVA que incide sobre o preço base e ISV, o que constitui uma dupla tributação injusta, dos seguros automóvel, do Imposto Sobre Combustíveis (ISP) e até por via das portagens. Repare-se que grande parte das vendas de veículos tem a ver com o aumento do rent a car que está a crescer devido ao turismo. Este crescimento na venda de carros está já a desacelerar. Tendo em conta o aumento de impostos sobre o setor com o OE2018, a despesa fiscal é insignificante. Acho mesmo que o incentivo ao abate de veículos devia regressar”, afirma Neves da Silva, secretário-geral da Associação Nacional de Empresas do Comércio e da Reparação Automóvel (Anecra).
IRS para estrangeiros
O Governo espera receber mais trabalhadores estrangeiros na qualidade de residentes não habituais. A taxa de IRS aplicada naqueles casos é reduzida em 20%. Logo, o Estado abdica de parte da receita fiscal por essa via, na esperança de conseguir recuperá-la de outro modo (IMT, IMI, IVA e outros impostos). O Orçamento do Estado para 2018 prevê uma despesa fiscal de 422 milhões de euros ligada aos residentes não habituais, segundo o Expresso. São mais 246 milhões do que em 2017. No início do ano, Portugal tinha 10 684 cidadãos com o regime de residente não habitual. São 16 500 euros per capita. Isso significa que deverão surgir cerca de mais 15 mil estrangeiros em 2018.
Curiosamente, a despesa fiscal global com IRS é apresentada no relatório do OE2018 como não tendo qualquer variação entre 2017 e 2018 (exatamente 875,6 milhões de euros). Erro? Talvez sim ou talvez não. “A receita fiscal bruta não deverá incluir a despesa fiscal. Por exemplo, os benefícios dos residentes não habituais (RNH) em sede de IRS não são considerados nas receitas fiscais desse imposto”, explica uma consultora que analisou o OE2018, mas que preferiu não ser identificada. Questão diferente prende-se não com os trabalhadores que são RNH, mas sim com os reformados com pensões obtidas no estrangeiro. Chegou a especular-se sobre a hipótese de os reformados estrangeiros passarem a pagar uma taxa mínima de IRS em 2018. O problema reside precisamente no perigo de travar a vinda de novos reformados ou afugentar os que já cá estão a contribuir para a economia nacional através de outros impostos que não o IRS.
“Efetivamente, alguns dos valores assumidos como despesa fiscal não se traduzem numa efetiva perda de receita para o Estado, como é exemplo o IRS do regime dos RNH (não fosse o regime e estes residentes provavelmente não estariam em Portugal) ou muitas das medidas utilizadas como meio de incentivo económico, uma vez que o próprio crescimento da economia irá, por sua vez, gerar mais receitas fiscais em sede de outros impostos. A título de exemplo, veja-se o incentivo de IRC à criação líquida de emprego, uma vez que mais emprego significará mais IRS, mais contribuições para a Segurança Social e mais impostos sobre o consumo”, afirma Afonso Arnaldo, fiscalista da Deloitte.
“Cerca de 85% da despesa fiscal é justificada pelos impostos sobre o consumo (IVA e impostos especiais sobre o consumo), impostos intrinsecamente ligados ao comportamento interno da economia. Desta forma, com o crescimento do PIB é natural o crescimento da despesa fiscal (no pressuposto de que não são revogados benefícios, isenções ou taxas reduzidas de imposto)”, acrescenta Arnaldo Afonso.
Histórico de dados distorcido?
“No inicio do reporte da despesa fiscal, muitos dos itens ficaram de fora, pelo que o aumento do valor em certos impostos foi somente devido ao fato de não ser reportado em anos anteriores. Aliás, essa é a maior critica do Tribunal de Contas (TC), conforme relatório de 2015”, refere um especialista contactado pelo Dinheiro Vivo. No relatório de 2015, o TC recomenda ao governo que a Autoridade Tributária “proceda à inventariação de todos os benefícios fiscais por imposto, com a respetiva justificação económica e social, nos termos legais”. O documento acaba por revelar vários exemplos de distorção. “A despesa fiscal relevada na Conta Geral do Estado de 2013 (1678 milhões de euros) aumenta 63% face a 2012 em virtude, sobretudo, do registo, pela primeira vez, da despesa fiscal em IRC por benefícios a Sociedades Gestoras de Participações Sociais (SGPS)”, entre outros motivos.
A distorção dos valores da despesa fiscal pode surgir devido à reavaliação de ativos das empresas. Este regime permite que aos aderentes aumentarem fiscalmente o valor do ativo fixo tangível e propriedades de investimento, sujeito a uma tributação autónoma especial no triénio 2016-2018. O Estado recebe uma receita fiscal imediata, porque ao reavaliar em alta os ativos das empresas estas têm de pagar mais impostos, mas depois como o valor das amortizações e depreciações do imobilizado também aumenta com a reavaliação do ativo, e como essas amortizações/depreciações são consideradas como custo fiscal em sede de IRC, as empresas como que ganham no futuro um crédito fiscal. O Estado ganha hoje e perde amanhã. A título de exemplo, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) estima que a adesão da EDP ao regime facultativo de reavaliação de ativos criado pelo Governo em 2016 gere um benefício fiscal acumulado de 174 milhões de euros para a elétrica até 2026.
Fonte: Dinheiro Vivo